Regionais

O mundo coberto de penas; Crônica do tamborilense Pedro Salgueiro

O sujeito vai envelhecendo e, crente de que a velhice por si só vai lhe dando sabedoria, passa a criar para si inúmeras (e inúteis) teoriazinhas. Uma delas, e das mais bestas, me assegura que os amigos e familiares se dividem em dois grupos distintos e opostos: o dos que adora o fim de ano – são os “puros de espírito”, os que tiveram uma infância terrivelmente feliz, os que sentem saudades de tudo (especialmente da longínqua meninice); estes mal veem chegar o novembro e já adquirem um estranho brilho nos olhos, riem (e choram) por qualquer coisa, ficam mais pacientes e ternos, passam a se preocupar com coisas bobas, como lavar o cachorro, organizar os livros na estante, fazer listas de presentes. Mas não só isso: revivem o ano todo de modo mais otimista: fazem balanços, estilam promessas, enfim, escrevem com letra vermelha na agenda frases edificantes, que sugerem a si e ao mundo que se tornarão pessoas melhores e mais felizes. Já o segundo grupo detesta qualquer rito de passagem, seja ele religioso ou mesmo o da mera marca do calendário – são os de “almas pesadas”, os que carregam nos ombros o peso do mundo, os que têm aftas no coração: estes só veem interesses comerciais nas cintilantes luzinhas de Natal em cada janela de subúrbio, apenas vislumbram hipocrisias nos cumprimentos risonhos e nos apertos de mão entre vizinhos e colegas de trabalho: repassam em suas mentes as infinitas mazelas do ano que (finalmente) passou, as inúmeras tristezas que carregam no coração, as matrículas do colégio dos filhos, o negrume que a luz deixa por trás de qualquer objeto.

E para tornar mais baratas as muitas teoriazinhas que me povoam a desocupada cabeça chego rapidamente à conclusão de que o mundo se divide entre os inveterados otimistas e os pessimistas de plantão.

Entre os lacrimosos bobões românticos e os sempre chatos realistas.

Entre os Fabianos e as Sinhás Vitórias. Entre as Cachorras Baleias e os Soldados Amarelos*.

Mas lembro mais dos otimistas do primeiro grupo, talvez por isso tenha me tornado um inveterado bobão que goste das festas de fim de ano; com certeza por influência de meus pais, que sempre deixavam o presente que conseguissem comprar com o pouco dinheiro que lhes sobrava debaixo das surradas redes dos seis filhos; também de pessoas como Dona Beatriz Sales e sua família, que sempre arrecadavam brinquedos para distribuir com as crianças pobres de Tamboril.

*Referências a personagens do livro Vidas Secas,de Graciliano Ramos, que inicialmente se chamaria O Mundo Coberto de Penas.

(Crônica de Pedro Salgueiro, publicada pelo Jornal O POVO)

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