Eis um dos nossos mais ilustres conterrâneos, Pedro Salgueiro, o poeta e escritor tamborilense que rotineiramente escreve suas crônicas para o Jornal O POVO.
BICHOS.
Preciso retornar ao meu Sertão pelo menos uma vez por ano para me reabastecer de muitas das coisas de que necessito para continuar vivo: aquele calorzinho do clima e das pessoas, aquela paisagem de deserto bíblico, mas principalmente para preencher os ouvidos com a sertaneja linguagem lacônica, seca, de mais vazios que de sobras.
Às vésperas de meus 50 anos resolvi visitar os parentes e amigos (vivos e mortos) que preservo por lá. Desta vez de ônibus, sem pressa.
Ia já de Catunda descambando para Tamboril quando um senhorzinho sentou ao meu lado para avistar melhor o local quase ermo em que desceria pouco depois. Puxou conversa tímido perguntando se em Fortaleza tava chovido. Respondi que sempre chovia, sim, rapidamente de madrugada, mas que a gente só sabia que havia chovido quando via o asfalto molhado, o carro respingado de manhazinha.
Ele falou em secas e esperanças por alguns minutos, quando o trocador veio lhe entregar o restinho do troco perguntado: — O senhor tem cinquenta centavos preu lhe voltar dois reais? Ele cutucou o cós da calça e sapecou de volta: “– Tenho não, meu filho, mas não tem bicho não, pode deixar quieto!” Acabei emprestando (não sei se a ele ou ao trocador) a moeda e ele desceu logo adiante, antes me desejando “boa sorte”.
Fiquei o restinho da viagem matutando sobre a expressão que ele havia empregado (e que antes era tão comum) mas que hoje quase não escutamos mais: “…não tem bicho não”, no sentido de “não tem importância não”, de “deixe pra lá”.
Para meus ouvidos soaram familiares, mas talvez soassem incompreensíveis para meus filhos ou mesmo para alguém algumas décadas mais jovem.
Daí a memória enveredou para outros bichos e recordei a gíria mais usada na minha infância nos anos 1960/70: “- Falaí, bicho” era quase automática nos cumprimentos entre jovens (quando vim para a capital nos anos 1980 o “bicho” já havia virado “Barão”). E fui voltando ao tempo em que meu pai repetia após qualquer contratempo: -“Atrás do pobre anda um bicho”. De vez em quando ainda me pego tentando consolar alguém com o refrão.
Meus tios quando queriam beber uma cachaça, conhaque ou Genebra (Zinebra lá na língua deles) simplesmente diziam que iam “matar o bicho”.
E eu aqui de volta a esse formigueiro de gente chamado cidade grande, alegre por ter revisto tanta gente boa, de ter recordado quantas histórias maravilhosas, mas também triste por ter constatado (mais uma vez) que os entes queridos hoje no cemitério São Miguel estão quase ultrapassando os vivos na minha pequena cidade natal.
Mas o que fazer – me pergunto aqui bem sentado nesse tamborete de pernas curtas, dobrando-me com dificuldade sobre a barriga enorme – enquanto tento retirar com uma agulha meu “bicho de pé” imaginário:
– Se ficar o bicho pega; se correr…