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Ruínas, a crônica do tamborilense Pedro Salgueiro.

pedrosalgueiro1A casa do meu avô foi demolida faz algumas décadas, tudo muito natural num país que não dá a mínima importância para suas memórias (era uma das mais antigas de minha centenária Tamboril, uma das mais belas; pé direito altíssimo, quintal grande, quartos de um lado e outro do longo corredor); por ela passaram algumas gerações de nossa família, mas passaram é força de expressão, continuam todos por lá zanzando entre as paredes do novo empreendimento comercial. Ali no segundo quarto à esquerda de quem entrava eu também nasci, filho de um pequeno sapateiro e uma jovem dona de casa, vim ao mundo e dei meus primeiros pinotes: por cima dos rastros de outros e outros parentes: suas paredes eram (são?) impregnadas de vidas, sussurros, brigas, preces…

Hoje quando passo por lá evito encará-la de frente, assim desarmado… dou cambalhotas na vista, atropelo com o nó dos dedos as lágrimas insistentes, disfarço o pigarro preso na garganta; não nego, as pernas tremem que tremem.

Mas juro que desenvolvi uma técnica eficiente para enfrentá-la assim, como disse, desarmado (melhor seria dizer desalmado): não vejo o novo imóvel, mesmo que algumas vezes até passe por lá (o proprietário é um estimado amigo de infância), porém imagino-o bem como quando fora o nosso berço querido: sala à direita com seu relógio grande de parede (esse consegui salvar, jaz parado em minha sala, as peças desmontadas dentro do estojo de vidro, mas minha filha já o ouviu badalar algumas vezes enquanto estuda distraída na mesa da cozinha), as velhas cadeiras de balanço que durante as tardes eram arrastadas para a sombra das castanholeiras da calçada; logo na primeira porta a penumbra do misterioso quarto de casal (só o vislumbrei umas poucas vezes, assim mesmo de soslaio e com medo), o corredor longo, estreito e completamente nu (apenas dependurado na parede uma foto pequena de um antigo Papa), finalizando com o segundo quarto (que já conheci como sendo de minha tia Amélia), a sala de jantar que poucas vezes vi povoada, uma porta dando para o jardim lateral gasto pelo tempo; uma despensa onde meu saudoso tio Jurandir prometia nos trancar se insistíssemos nas brincadeiras, um vão largo antes de descobrirmos bem à direita a cozinha com seu fogão de lenha, mesa grande e pia larga (essa cozinha foi sepultada muitos anos antes do restante da casa) – esse era o lado direito do casarão; à esquerda havia uma sala em que meu pai improvisou sua sapataria, e que tempos depois serviu como sala de TV, e onde ainda hoje vejo minha avó sentada em sua cadeira observando o movimento da rua (e esperando a hora exata de almoço e jantar do Seu Chico Inácio: 10 e 16 horas); contíguo vem o quarto onde nasci e que lembro como, posteriormente, de minha tia Gilberta; até o final vinha um salão escuro onde meu avô guardava bugigangas variadas, camburões de milho e feijão; ao sairmos desse cômodo, à direita, reencontrávamos a sala de jantar, de onde então avistávamos o imenso quintal com suas plantas velhas e o tenebroso cacimbão, cuja memória ainda me causa medo; já no quintal havia um quartinho â esquerda onde eram guardados o que se possa imaginar, até um carrinho de mão de madeira e um arado enferrujado.

Precisaria de um livro inteiro para descrever tudo o que havia (ou há!?) na velha casa dos meus avós, necessitaria também de tempo (o que numa curta vida não consiga), talvez conviesse ter vista mais limpa (coisa que essas lágrimas insistentes não têm permitido), mas ainda bem que de vez em quando posso fechar os olhos e abrir a porta apenas encostada, adentrar sem medo a penumbra do corredor até a luz do quintal, onde sei que estarão, conversando em silêncio, meu pai, vovô Chico Inácio, meus tios Jurandir, Edmilson e Luis Petronílio, ao lado Lucas, Tonho, Mundinho, Isaías, Benjamim, Carminha, madrinha Amélia e Felisbela, enquanto na cozinha minha avó Candinha coa o café, ajudada pela filha Núbia e as tias Luzia e Elizabete.

(Crônica divulgada pelo Jornal, O POVO)

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