Os católicos de Crateús, município no sertão cearense, foram estigmatizados durante décadas como os “fiéis que prenderam a santa”. Em 10 de novembro de 1953, a imagem de Nossa Senhora deixou a cidade de Fátima, em Portugal, para circular por dioceses brasileiras. A santa deveria embarcar no mesmo dia em um avião de Crateús para Tauá, também no Ceará, onde devotos a aguardavam, mas a imagem foi impedida de deixar o município pelos milhares de católicos que se aglomeraram para vê-la de perto.
“A cidade estava lotada, nunca tinha se visto uma multidão tão grande em Crateús até então. Veio gente de cidades vizinhas, da zona rural; a pé, a cavalo, que era o transporte da época. Estava todo mundo preparado para ver a santa”, conta o pesquisador Flávio Machado.
O escritor, membro da Academia de Letras de Crateús, conta a história no livro “Crateús – Lembranças que marcaram história” com base em suas lembranças – ele tinha oito anos quando a santa foi “presa” – e em pesquisas nos registros que padres e bispos fizeram sobre o causo. Para ele, o que ocorreu foi um ato de devoção à Nossa Senhora, mas o caso repercutiu de forma sensacionalista, e os católicos da cidade ganharam a fama de carcereiros da santa.
A santa desfilou pela cidade em um Jeep aberto, do campo de pouso de aeronaves até o Arco de Fátima, no Centro da cidade, inaugurado na data da visita da santa, conforme o registro no livro. Quando chegou à igreja matriz, a fila de fiéis para se aproximar da imagem dobrou quarteirões.
A prisão
A imagem da santa foi impedida de deixar a cidade, em parte, pela vontade de os fiéis a tocarem e se aproximarem. “O povo não se conformou e queria um prazo maior, inclusive as autoridades presentes: o juiz de direito, o promotor de Justiça, João Afonso de Almeida, então prefeito de Crateús, o delegado e outras pessoas influentes”, registra o livro Crateús, lembranças que aquecem o coração. Mas a fama de aprisionamento da santa veio após uma ação do padre da diocese local, padre Palhano Sabóia.
“O padre Palhano queria cumprir o cronograma e mandar logo a santa para Tauá, que era a próxima cidade que a santa devia ir, mas a santa já tinha chegado atrasada a Crateús, e a maioria das pessoas ainda não tinha chegado perto da imagem. Anoiteceu e as pessoas não tinham se aproximado da santa. Os fiéis – que aqui nós temos uma tradição católica muito forte – queriam venerá-la de perto”, lembra Machado.
“Quando anoiteceu e as pessoas ainda não tinham liberado a santa para ir a outra cidade, o aviador que ia levar a santa disse que não tinha mais condições de pousar, porque na pista de pouso de Tauá não tinha iluminação na época. Resultado: a santa teve que pernoitar em Crateús”, explica Machado.
“O padre Palhano ficou irritado”, continua o escritor, “passou um telegrama para o dom José Tupinambá da Frota, bispo de diocese de Sobral: ‘Bispo, o povo está prendendo a santa, não soltam ela da cidade!'”
A prisão da santa frustrou os fiéis de Tauá, que também haviam preparado uma recepção fervorosa e tiveram que aguardar até o dia seguinte para reverenciá-la de perto.
O castigo
Ainda conforme o escritor, a prisão da santa irritou também o bispo, que mandou fechar a igreja de Crateús como forma de castigo por restringir as viagens da santa conforme o cronograma.
“Bispo Tupinambá deixou a igreja fechada por alguns dias e mandou tirar todas as hóstias consagradas do local. O padre Bonfim [então padre da igreja matriz de Crateús], muito triste, foi para paróquia mais próxima, a de Senador Pompeu, deixar as hóstias.”
O fechamento da igreja, no entanto, não foi o pior castigo para os católicos da cidade. Pelas décadas seguintes, os cristãos de Crateús ficariam conhecidos como “os devotos que prenderam a santa”.
A repercussão
Conforme o livro História da Paróquia de Crateús, escrito pelo padre Bonfim alguns anos após a prisão da santa, o causo teve repercussão em rádios do Ceará, Rio de Janeiro, São Paulo “e até da BBC de Londres”.
“Como a história saiu na imprensa como a ‘prisão da santa’, pra onde um crateuense viajasse e se identificasse como sendo da cidade as pessoas diziam: ‘ah, então você que prendeu a santa, né?'”, lembra Flávio Machado.
Ele conta que inclusive sofreu bullying – embora o termo não fosse usado à época – na escola quando estudou na diocese de Sobral. “Qualquer deslize que eu cometia, era a mesma coisa: ‘se você prendeu a santa, é capaz de coisa muito pior’.”
Flávio Machado relata que, com o tempo, a história da prisão da santa foi caindo no esquecimento – “hoje tem muito jovem que nem sabe que isso aconteceu”, – e os católicos de Crateús perderam a alcunha de detentores da Nossa Senhora de Fátima.
Cinquenta anos após a famigerada data da prisão, em 2003, a mesma imagem saiu de Fátima para Crateús, em comemoração a meio século do Arco de Fátima. Em 2005, a santa ganhou uma terceira viagem à cidade, quando foi acompanhada por imagens de imagens de três pastorinhos, uma antecipação ao centenário da aparição de Fátima, celebrado em 2017.
“Nas outras duas viagens tudo ocorreu bem, de forma mais organizada e sem prisão de santa”, diz, aliviado, o escritor Flávio Machado.
(Com informações do G1)