Ontem seria dia de intenso barulho em um dos quartos do Hospital São Mateus, em Fortaleza. Dois ensaios estavam marcados para acontecer diante de Haroldo Serra, em preparação para o próximo espetáculo da Comédia Cearense, idealizada pelo teatrólogo. Mais que receber a bênção do mestre, o gesto abraçava proporções maiores. Carregava aconchego e afeto. “Ele estava numa fase que precisava acordar. Com o quadro clÃnico já estável, marquei os dois encontros pra gente fazer zoada”, comenta Hiroldo Serra, filho do artista.
Não aconteceram. Tampouco deixaram de traduzir a vitalidade e esperança sempre pulsantes na mente e atuação incontornáveis de Haroldo, relevante personagem para as Artes Cênicas do Ceará e do Brasil – referenciado pelo teatrólogo Marcelo Farias Costa como “O maior gênio empresarial do teatro cearense”.
Internado desde maio, quando foi submetido à cirurgia para tratar de complicações de um tumor no cérebro, faleceu ontem (16), aos 84 anos, após sofrer parada cardÃaca. “Considero que existe um teatro antes e outro depois do Haroldo Serra. Nos meus mais de 40 anos na área, nunca vi uma pessoa tão obstinada pelo que gostava de fazer: produzir, fomentar e formar pessoas interessadas nessa arte”, complementa Hiroldo, que seguiu os passos do pai e relembra, com carinho, a infância em Tamboril, no Norte do Ceará.
Companheira
O percurso de Haroldo foi trilhado sobretudo a partir do esforço dividido com a esposa, a atriz Hiramisa Serra, com quem partilhou espetáculos e 61 anos de casamento. Além de Hiroldo, tiveram mais dois filhos: Haroldo Júnior e Harolmisa. União multiplicada em oito netos e dois bisnetos.
Foi em Tamboril, a 300 km de Fortaleza, que o lendário profissional nasceu, em 3 de dezembro de 1934. Lá, iniciou no universo cênico ainda criança, por meio do tio, Franklin Serra, que promovia peças e shows no interior. Aos 16 anos, já na Capital, começou a trabalhar na Rádio Iracema. Atuou ainda na Rádio Verdes Mares e Dragão do Mar. Exerceu a profissão de radialista por 14 anos, o que lhe permitiu a aproximação da radiodramaturgia e, por conseguinte, do teatro.
Neste 2019, comemoraria 62 anos da estreia nos palcos, data que remonta a 1957, quando encenou “Lady Godiva”, de Guilherme Figueiredo. Naquele mesmo ano, fundou a Comédia Cearense, um dos mais antigos e influentes grupos de teatro do PaÃs, do qual Hiroldo é diretor hoje. Antes desse perÃodo, a paixão pelas Artes Cênicas o fez criar, em 1952, ao lado de B. De Paiva, Hugo Bianchi e Marcos Miranda, o Teatro Experimental de Arte (TEA), que fez história na Capital.
À época, o trabalho do trio foi responsável por iniciar a participação de atores e atrizes cearenses no Theatro José de Alencar (TJA), abrindo as veredas para que mais artistas pudessem ganhar a atenção do público. Existiu até 1956.
Alcance
Com montagens, livros, projetos, intensa produção e atuação artÃstica, dentre outros relevantes trabalhos, a herança de Haroldo Serra igualmente se traduz em desmedido reconhecimento. Foi diretor do Theatro José de Alencar nos anos 1970. E entre as comendas recebidas, estão os prêmios de Melhor Diretor, Melhor Ator e Melhor Cenógrafo, no Festival de São José do Rio Preto (SP); os troféus de Melhor Espetáculo com a peça de Gastão Tojeiro, “O Simpático Jeremias”; e de Melhor Espetáculo pela Comissão Julgadora e Júri Popular com “O Morro do Ouro”.
Em 2002, foi agraciado com o Troféu Sereia de Ouro, do Sistema Verdes Mares, e, no mesmo ano, inaugurou a Casa da Comédia Cearense, no bairro Rodolfo Teófilo, destinada a preservar e divulgar a trajetória da companhia.
(Diário do Nordeste)